Cidade dos universitários

Centenas de milhares de estudantes universitários têm ajudado a revigorar o centro da capital paulista.


QUASE NINGUÉM sabe que Cândido Portinari é o autor do gigantesco painel que decora a entrada de um bingo desativado, localizado dentro de uma galeria de lojas populares no centro de São Paulo -o bingo é hoje um imenso porão escuro, habitado por ratos e baratas. O anonimato é uma humilhação a um dos maiores artistas plásticos brasileiros.
Se estivesse numa tela, a obra seria avaliada em milhões de reais. O desagravo deve ocorrer ainda neste ano. Desde a semana passada, começaram a fazer ali o futuro Teatro Portinari. A mudança de um ex-bingo em teatro é possível por causa dos universitários.
Sem alarde, os universitários ocupam a região, visíveis nos bares lotados no fim da noite, em locais que, antes, estavam vazios nesse horário.
Não dá para entender os caminhos de São Paulo sem prestar atenção em detalhes como o desagravo a Portinari e nos bares alegres.


O fim do anonimato daquele Portinari não se deve à reverência pela arte, mas a uma simples escassez imobiliária. Muitas universidades privadas estão se instalando na região central e atraem dezenas de milhares de estudantes.
Uma delas (Uniesp) precisava de um auditório para palestras e eventos culturais. Até que descobriu aquele ex-bingo, que, no passado, tinha sido um cinema.
A Faap reformou um prédio para servir de casa a artistas estrangeiros, convidados a dar aulas e, ao mesmo tempo, desenvolver um projeto. Um dos prédios históricos da cidade, ex-sede da Light, no viaduto do Chá, é um shopping center, mas foi comprado por um grupo privado (UNG) para ser universidade -isso depois de uma árdua disputa com outra universidade.
As principais marcas do ensino superior estão no centro ou muito próximas dele pela simples razão de que é um bom negócio. No passado, eram apenas cursos públicos como a faculdade de Direito. O domínio territorial é de universidades como Anhembi Morumbi, Uninove, FMU e Unip, entre outras. A Unesp vai montar um campus na Barra Funda, reunindo programas de arte e física teórica. É a tradução da estatística divulgada na quinta pelo IBGE: de cada quatro universitários, três estudam em faculdades privadas.


Além do transporte fácil, as faculdades estão de olho nas centenas de milhares de jovens que trabalham no centro e perceberam que o diploma de ensino superior se traduz em mais dinheiro no bolso.
Uma rápida pesquisa nos bancos de emprego da internet mostra que as empresas de telemarketing dão preferência a jovens universitários. É no centro que se concentram essas empresas, muitas das quais funcionam em quatro turnos.
Esse bom negócio abre oportunidade para o próximo prefeito apressar o reencontro definitivo da cidade com seu centro. Ou seja, com sua história.


Uma novidade dessa eleição é que os principais candidatos à prefeitura vêem a vocação do centro como pólo de tecnologia, cultura e educação.
Responsável por levar a prefeitura para o viaduto do Chá, Marta Suplicy sugere que a criação de albergues estudantis, aproveitando que os universitários já estão por lá. Gilberto Kassab colocou como uma de suas prioridades transformar a cracolância na Nova Luz, atraindo empresas de tecnologia com incentivos fiscais -isso implica, entre outras coisas, trazer faculdades e escolas técnicas. Ele conseguiu fazer no centro, com a Virada Cultural, a melhor festa paulistana. Já deixou no Orçamento verbas para criar um complexo cultural ao lado do Teatro Municipal.
Quando era governador, Geraldo Alckmin criou uma extensão do Palácio dos Bandeirantes num prédio do centro ele estimulou várias secretarias, como a da Segurança, a se mudarem para lá. Como candidato a prefeito, ele promete criar, na região, a “Broadway Paulistana”, ocupando cinemas abandonados.
Foi na gestão Covas/Alckmin que se realizaram algumas das intervenções mais ousadas da cidade -dos escombros de estações de trem nasceram espaços dedicados à música erudita, às artes plásticas e à língua portuguesa.


Nada disso, porém, ainda afastou dali a degradação urbana e humana. Basta dar um passeio noturno pela cracolândia ou ver o número de pessoas que dormem na rua.
Mas o retorno dos jovens à região central é sinal de que, mesmo que as promessas dos candidatos não saiam do papel ou não sejam bem executadas (como é o normal), o reencontro da cidade é um caminho sem volta.
Até porque é um bom negócio.


PS- José Serra me disse que, se depender dele, vai terminar o mandato despachando na fronteira da cracolândia. Se não der tempo, ele pretende deixar tudo preparado para que o próximo governador volte para o centro da cidade.
A dependência está no andamento da reforma do Palácio dos Campos Elíseos, um casarão construído pela aristocracia do café e, depois, sede do governo estadual, antes da mudança para o Morumbi. O projeto prevê o aproveitamento de imóveis em torno do casarão, criando-se um complexo administrativo.
A mudança do Palácio dos Bandeirantes teria um monumental efeito simbólico -a saída do Morumbi, com sua plutocracia isolada, para a fronteira da cracolândia. É a ousadia que Mário Covas teve ao determinar que a prefeitura saísse do bucólico Ibirapuera para o deteriorado Parque D. Pedro, que, agora, será um museu dedicado às crianças e aos adolescentes.