Chamem o ladrão

Patrocinada pelo Ministério da Saúde e pela Organização das Nações Unidas (ONU), uma investigação ainda inédita sobre os hábitos de crianças de rua detectou cumplicidade entre traficantes de drogas e policiais nas ruas de São Paulo.
Com o título de “Cartografia de Uma Rede”, a pesquisa, realizada pelo Projeto Quixote, da Universidade Federal de São Paulo, em parceria com a Faculdade de Saúde Pública da USP, colocou por três meses educadores nas ruas observando rotas, comportamentos e costumes das crianças e dos adolescentes.
Os educadores foram convidados a escrever diários, analisados depois por psicólogos e psiquiatras; o texto deve ser lançado oficialmente apenas em maio.
Num comovente perfil da solidão urbana, os relatórios revelam histórias de seres deteriorados, incapazes de cortar o círculo vicioso da droga e da violência.
Muitas vezes, a face do poder público aparece na forma de um policial extorquindo traficante e consumidores.
Ou seja, quadrilha fardada, num dos indicadores mais sombrios do ciclo de omissão.

As consequências da omissão estão em mais uma pesquisa inédita, também realizada por psiquiatras da Universidade Federal de São Paulo.
Desde 1993, 131 viciados de crack são estudados. Na semana passada, começaram a tabular os resultados: passados seis anos, a imensa maioria estava desaparecida, morta ou presa.
Para ser mais preciso: dos 101 que foram localizados, 22 morreram, a maioria deles assassinada.
Não se combate, de fato, violência urbana sem o combate ao abuso de drogas -e, obviamente, só a repressão é uma bobagem.
Numa investigação sobre a nova geografia do crack em São Paulo, publicada hoje pela Folha, vemos que a repressão feita em determinados lugares apenas espalhou os traficantes e consumidores para outros bairros.
É algo tão sensato como alguém, querendo limpar o lixo da cozinha, espalhá-lo por toda a casa.

Desde o final da década de 80, acompanho no Brasil e exterior, especialmente Estados Unidos, projetos que visam reintegrar crianças e adolescentes marginalizados.
Aprendi que dá para resolver; no mínimo, amenizar.
Não é necessário inventar nada de novo. A receita é conhecida: oferecer ao jovem um ambiente em que seja aceito, respeitado, ajudando-o a recuperar a auto-estima, introduzindo-o no prazer da aprendizagem e na reverência ao trabalho.
Quando necessário -e se necessário-, o sistema hospitalar deve entrar com medicação.
Vi isso no Projeto Axé, de Salvador, Mangueira, no Rio, Projeto Quixote, em São Paulo, passando pelo Harlem, em Nova York, Cali, Colômbia, Palermo, na Itália.
“O fundamental é oferecer um novo circuito, além do jogo bruto de traficantes e policiais”, afirma o psiquiatra Auro Lescher, do Projeto Quixote, acostumado a ver meninos e meninas largarem o crack.

Se temos crianças drogadas na rua é por pura falta de decisão da comunidade.
O SOS Criança registrou no ano passado menos de 900 crianças que vivem nas ruas de São Paulo.
É, claro, uma amostragem. Mas não tão longe dos números finais. Fala-se que, em toda a cidade, não haveria mais de 2.000 crianças, espalhadas pelas esquinas e semáforos.
Será que é tanta gente assim para o problema não ser resolvido pela mais rica cidade da América Latina?
Se houvesse um trabalho coordenado da prefeitura, governos federal e estadual, com ajuda de empresários, dirigentes sindicais, igrejas e entidades não-governamentais, o ambiente iria melhorar rapidamente.

Do jeito que estamos, apesar de alguns notáveis programas oficiais e não-oficiais, ainda deixamos o problema da segurança na mão da polícia.
Como diz a música, chamem o ladrão.

PS – Belo exemplo. Basta ir a Belo Horizonte, onde um programa da prefeitura, ajudado pelo Unicef, vem obtendo excepcionais resultados.
Esse tema era uma das promessas de campanha do PT, que ganhou a prefeitura com Patrus Ananias, em 1992.
Visível como há menos crianças de rua em Belo Horizonte.