O presidente brasileiro diz que a área de saúde é uma das prioridades para o seu governo. Há muito interesse no país por experiências em outros países. Como é a situação atual da saúde pública na Europa?
Simone Veil – Em toda Europa Ocidental e também na Europa dos antigos países comunistas, o Estado tem um lugar preponderante no sistema de saúde. É o Estado que organiza o sistema de distribuição dos tratamentos e que organiza também as condições de execução das despesas.
Isso é importante por três razões. Primeiro, para garantir a formação dos médicos. Em segundo lugar, para garantir a qualidade do atendimento. Em terceiro, para garantir um mínimo de planejamento para evitar que o sistema tenha um custo excessivamente elevado.
Folha – Quais tratamentos deve oferecer a saúde pública?
Veil – A saúde pública é aquela que oferece o atendimento primário à população. A saúde pública para nós não é o tratamento das clínicas particulares, que oferecem tratamentos de caráter sofisticado.
Folha – Que tipo de atendimento está englobado na classificação “primário”?
Veil – Isso é definido pela Organização Mundial de Saúde. No caso de países desenvolvidos, como os da Europa, a média de investimentos do Estado no setor de saúde é equivalente a 8% do PIB. No caso dos Estados Unidos, chega a 14%. Na França, chegamos a 10%.
Folha – Se um francês precisa se submeter a uma operação para implantar uma ponte de safena, o que acontece com ele?
Veil – Todo mundo tem acesso, por um sistema de reembolso das despesas.
Folha – A sra. poderia detalhar um pouco os tipos de atendimentos primários da saúde pública da França?
Veil – Em primeiro lugar, vacinas. A proteção maternal e infantil. Todas as questões de higiene. E o combate às doenças infecto-contagiosas.
Folha – Como a saúde pública trata o aborto na França?
Veil – A legislação na França permite que toda mulher, dentro de um certo prazo de gravidez, se apresente a clínicas e peça um aborto. Quem paga é a seguridade social.
Folha – Quando a sra. defendeu a legalização do aborto, a tese foi muito atacada?
Veil – Houve reações muito violentas, mas hoje não há mais.
Folha – Em que ano foi isso?
Veil – O texto da legislação foi votado no final de 1974.
Folha – Como foi exatamente a reação da sociedade?
Veil – Fui ameaçada. Fui chamada de assassina.
Folha – O Vaticano tentou influenciar na decisão francesa?
Veil – Eu tinha me encontrado com os meios da Igreja na França e sabia o que eles aceitariam e até onde poderíamos ir.
Folha – Foi um solução negociada com a Igreja.
Veil – Não. Mas a Igreja fazia questão de que as clínicas religiosas não fossem obrigadas a praticar o aborto. Chamava-se isso de cláusula de consciência do médico.
Folha – Qual foi o seu argumento em 1974 para defender a legalização do aborto?
Veil – Havia centenas de mulheres que todos os anos morriam. Eram justamente as mais pobres, porque faziam abortos clandestinos. As que tinham maiores meios iam para o exterior fazer o aborto.
Folha – Os adversários da idéia argumentam que o aborto representa a morte de uma vida. Como a sra. responde a isso?
Veil – É um debate que voltou à tona com a procriação assistida por médicos em laboratório. Mas os parlamentares na França não quiseram debater sobre a partir de qual momento começa a vida.
Folha – Quais são as últimas estatísticas disponíveis sobre o número de abortos na França?
Veil – Aproximadamente 180 mil por ano, para uma população de 47 milhões. É menos do que se tinha antes (da legalização).
Folha – Por que tantas pessoas continuam fazendo aborto? Onde está a falha?
Veil – É falta de informação sobre métodos anticoncepcionais. É muito difícil de fazer passar a mensagem sobre contracepção. Principalmente nos meios menos favorecidos.
Folha – Em qual estágio se encontra na França o debate sobre descriminar as drogas? No Brasil se discute uma abordagem mais liberal sobre o assunto.
Veil – Nós também temos essa discussão. É um grande debate na França. Eu criei há alguns meses uma comissão para começar a estudar essa questão. E eu não peguei só especialistas. É claro, há alguns médicos, policiais e juristas, mas eu principalmente quis abrir essa comissão a pessoas que se interessam pelos problemas da sociedade –para ter uma opinião mais livre sobre o assunto. Eles devem me entregar as conclusões dessa comissão em 15 de janeiro.
Folha – Qual a sua posição?
Veil – Eu acredito que a posição deles será, por uma maioria, para a liberalização das drogas leves.
Folha – Quais seriam essas drogas?
Veil – Maconha e seus derivados, como haxixe. Não inclui cocaína nem heroína.
Folha – Qual a sua posição particular sobre o assunto?
Veil – Nós temos também um comitê de ética. Esse comitê fez um relatório preconizando a descriminação das drogas leves. Mas muitas vezes é difícil fazer a distinção sobre os tipos de drogas. Outro problema é que o que pode ser descriminado é o uso. Não a comercialização.
Folha – Um viciado em heroína é uma pessoa doente. Não se estaria punindo-o ainda mais tornando-o criminoso?
Veil – Não é somente um doente. Ele é uma pessoa que pelo consumo que faz de uma droga pode se tornar uma pessoa perigosa.
Folha – Mas e no caso de uma pessoa que consuma bebidas alcoólicas?
Veil – Quando, a partir de um certo nível de consumo de álcool, uma pessoa se torna perigosa, ela também é punida. Há uma sanção criminal para, por exemplo, uma pessoa que dirige embriagada.
Folha – O relatório que a sra. recebe no dia 15 pode gerar um projeto de lei sobre drogas?
Veil – É muito difícil para mim, individualmente, dar uma resposta. Porque o governo estuda esse problema de forma geral. Houve uma pesquisa junto à população jovem, por iniciativa do governo, e uma das coisas que os jovens pediram foi, justamente, a descriminação das drogas leves.
Folha – Quanto tempo a sra. acha que será necessário para que se alcance um consenso sobre a descriminação do uso de drogas leves, como a maconha?
Veil – Há uma tendência para isso. Mas não se chegou ainda a nenhum tipo de resultado conclusivo.
Folha – Em que estágio está o combate à proliferação da Aids na França?
Veil – A prevenção ainda não é perfeita, mas está dando resultados. Temos um programa que permite que pessoas troquem na farmácia seringas usadas por novas para não haver contaminação.
Folha – Qualquer pessoa pode ir até a farmácia e trocar uma seringa usada por uma nova?
Veil – Sim. Há vários sistemas. Qualquer pessoa pode trocar sua seringa na farmácia, anonimamente. Também é possível comprar um pequeno “kit” com seringa e material para desinfetar. Custa US$ 1. Há máquinas semelhantes às que vendem refrigerantes que fornecem automaticamente novos “kits”, por um valor mais baixo ainda do que US$ 1, desde que você deposite ali a sua seringa usada.
Folha – Como o desemprego tem afetado o estado de saúde dos franceses?
Veil – O que constatamos é que não houve aumento dos índices de alcoolismo. Drogas, nas camadas mais jovens, sim. E, principalmente, o que nós constatamos é quando as pessoas enfrentam grandes dificuldades de caráter social, elas deixam de procurar até a rede de saúde pública. Porque não se informam mais, não sabem mais preencher formulários.