Em apenas uma geração, de 1979 até o último semestre, o Brasil ultrapassou meio milhão de assassinatos, concentrados nos grandes centros urbanos -e, especialmente, na área metropolitana de São Paulo, de acordo com os Ministérios da Saúde e da Justiça.
Apenas em 1999, segundo dados ainda em fase de tabulação do Datasus, responsável pelas estatísticas do Ministério da Saúde, computaram-se mais 42 mil. Até aquele ano, contando desde 1979, foram 516 mil.
Com base em dados disponíveis nas Secretarias da Segurança Pública dos Estados, estima-se que pelo mais mais 20 mil pessoas foram assassinadas no semestre passado. O total bate nos 578 mil (o equivalente à metade da população de Porto Alegre).
Mantido esse ritmo, é possível que este ano o balanço final seja equivalente a 600 mil homicídios.
“Estamos, claramente, diante de uma epidemia, uma doença que, pela rapidez de seu crescimento, parece fora de controle”, compara o ministro da Saúde, José Serra.
A noção de que a violência assumiu ares de epidemia é o que motiva o movimento “Basta! Eu Quero Paz”, que, amanhã, vai marcar um dia de protesto no Brasil, convidando a população a se vestir de branco pelo fim da violência.
“Estamos, hoje, com, sensação de que somos reféns de uma guerra perdida”, afirma o sociólogo Túlio Khan, do Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente), que se dedica ao estudo da criminalidade no Brasil.
Uma pesquisa feita pelo Núcleo de Estudos da Violência, da USP (Universidade de São Paulo), revela até que ponto o medo da criminalidade mudou o comportamento do brasileiro: 50% dos entrevistados disseram já ter deixado de sair de casa por causa da violência. As pesquisa foi realizada em dez capitais.
Morre-se de medo de entrar à noite num caixa eletrônico ou parar em um cruzamento com as janelas do carro aberta. Prospera o comércio da blindagem de automóveis. Até quartos, preparados para um ataque, já são blindados nas casas.
No Brasil, são 25 homicídios para cada 100 mil habitantes. O que assusta não é tanto o número absoluto, mas sua evolução; determinadas regiões se converteram em líderes mundiais de violência, ultrapassando nações conflagradas como Colômbia ( 78 mortes por 100 mil habitantes), em que há ação de grupos paramilitares, guerrilheiros e narcotraficantes, além da repressão promovida pelo próprio Estado.
Em 1979, na cidade de São Paulo, eram registrados 8 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. No ano passado, essa relação já era de 58 assassinatos por 100 mil habitantes.
Em Tóquio e Paris, por exemplo, essa relação é, respectivamente, 2 e 3
por 100 mil.
Cali, na Colômbia, tomada pela guerra de traficantes, é de 88 por 100 mil – inferior a várias regiões de São Paulo como a praça da Sé, onde ocorre a manifestação pela paz, amanhã. Nesse local do centro paulistano, as estatísticas oficiais registram a taxa de 102 mortes por 100 mil habitantes.
Na zona sul da capital paulista, a região do Jardim Ângela virou sinônimo de mortandade. Lá, Cali também é superada com folga: 84 por 100 mil.
A tradução desse quadro de tragédia dos tempos modernos: a cada hora e meia, o tempo de duração de uma partida de futebol, um paulistano morre assassinado.
Mais uma tradução: de cada 100 mortos entre 15 e 24 anos, segundo a Fundação Seade, quase 70 , mais precisamente 66,6, foram vítimas de homicídio.
Dos 42 mil homicídios ocorridos, ano passado, no Brasil, quase 13 mil ocorreram no Estado de São Paulo – 8% a mais do que o verificado no período anterior.
“Muita gente acredita, e, vamos reconhecer, com alguma dose de razão, que o crime compensa, tamanha a impunidade”, afirma o ministro da Justiça, José Gregori.
Em 1988, os assassinatos em todo o país eram 21 mil. Em pouco mais de dez anos, metade do que é registrado atualmente. É, de fato, como se fosse uma doença contagiosa, resistente aos remédios.
São Paulo é um bom exemplo: nunca se gastou tanto e nunca, também, se prendeu tanta gente. Mas nunca a quantidade de mortes de um ser humano praticada por outra pessoa foi tão alta.
“Infelizmente, a segurança não depende só da polícia”, diz o secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, Marco Vinicio Petrelluzzi.
O homicídio é apenas a ponta mais infeccionada, provocada, em larga medida, pela sensação de impunidade.
De acordo com o Ministério da Justiça, no primeiro semestre no ano passado, foram registrados 11 mil tentativas de homicídio e 265 mil casos de lesões corporais.
No primeiro semestre do ano passado, foram registrados 241 sequestros; mais de um por dia.
A impunidade ajuda a explicar o homicídio, mas, também, outras mortes. Por exemplo, acidentes de trânsito.
Se os motoristas tivessem mais receio sobre as consequências de sua distração ou irresponsabilidade certamente seriam mais atentos e desafiariam menos a lei -o que, claro, resultaria em menos mortos.
A manifestação de amanhã sinaliza que os setores organizados da sociedade civil vocalizam o pânico crescente dos brasileiros, apostam na idéia de que, isolada, a ação das polícias tem pouco efeito e o melhor remédio contra a doença da violência é a participação comunitária.