Com boa pontuação na USP, preferiu pedagogia -e voltaram a dizer que Giovani deveria ser desequilibrado |
GIOVANI FERREIRA É UM exemplo de como pode ser difícil a vida de um superdotado. Filho de pais analfabetos, nascido no interior de Minas Gerais, ele não só era chamado de deficiente mental pelos seus professores como, com freqüência, era punido por seu comportamento. Quando os castigos já não funcionavam, Giovani foi encaminhado para internação psiquiátrica e foi aí que perceberam que seu único problema era ter uma inteligência muito acima da média -e essa era a razão da dificuldade de lidar com a rotina escolar. “Na escola, eu sempre tive de fingir.”
Aos oito anos, montou uma estação de rádio de ondas curtas e tornou-se um radioamador -apenas lendo um manual da Marinha dos Estados Unidos, depois de ter aprendido inglês lendo uns poucos livros e ouvindo a BBC. Veio para São Paulo, passou com alta pontuação no vestibular da USP e poderia entrar em qualquer curso, inclusive medicina. Preferiu pedagogia -e muitos voltaram a dizer que Giovani deveria ser mesmo desequilibrado.
Como sempre adorou informática, criou, logo no primeiro semestre do curso, um método de leitura em braille pela internet, adotado pela Unesco. Nem com todas as conquistas se sentia acolhido em sala de aula. “As pessoas acham que os superdotados vão se dar bem na vida, mas a maioria se deprime com a incompreensão.” Essa depressão significa, muitas vezes, drogas e violência.
Um sinal da incompreensão é a burocracia para que ele tire seu diploma na graduação. Não conseguia freqüentar com assiduidade. Precisava, por exemplo, ir às aulas sobre o método braille, que queria conhecer melhor apesar de já ter feito a invenção na rede. Por causa das faltas, o diploma não sai. Nem o interesse da pós-graduação da Escola Politécnica da USP em atraí-lo diminui as dificuldades de ordem burocrática.
O caso Giovani, apresentado na sexta-feira passada num seminário sobre superlotação e altas habilidades, é um dos ângulos relevantes no debate sobre a violência no Brasil, provocado ainda mais pelo filme “Tropa de Elite”.
Um dos pontos do filme que mais suscitaram polêmica foi o fato de os jovens de maior poder aquisitivo manterem o comércio de drogas.
Esse fato traduz-se em estatísticas do estudo que vem sendo feito pelo economista Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas, um dos maiores especialistas brasileiros em questões sociais. Aproveitando a onda levantada pelo filme -e com uma ponta de ironia-, o economista batiza o estudo de “Droga de Elite”.
O problema da violência, de fato, não é a droga, cujo comércio, acertadamente mostra o filme, é bancado pelos mais ricos. O problema é a falta de perspectiva. Se, num passe de mágica, conseguíssemos fazer com que ninguém cheirasse cocaína ou fumasse maconha, as periferias não passariam a viver em calmaria. As quadrilhas iriam mudar de foco. E, talvez, fizessem coisas ainda mais ameaçadoras como roubos e seqüestros.
O maior desperdício brasileiro é o desperdício de talentos -uma parte deles, além de não produzir nada, ainda vai para o crime. De acordo com as estatísticas do seminário, devem existir no Brasil 5% de pessoas com potencial para altas habilidades -os tais superdotados.
Deixe-me traduzir: temos atualmente 60 milhões de crianças e adolescentes, o que significaria que 3 milhões seriam notáveis cantores, médicos, engenheiros, artistas plásticos -e por aí vai. Seus talentos não despertam porque esses jovens não têm estímulo nem na escola nem na família -a maioria deles acaba se acomodando numa vida medíocre.
Há projetos brasileiros, como o Ismart, que caçam talentos entre os mais pobres, matriculando-os nas melhores escolas privadas. Os jovens conseguem rapidamente recuperar o tempo perdido e encontrar uma vocação. Vemos como conseguem brilhar, como se abrissem a janela de um quarto escuro.
Mas o que acontece ao superdotado se estiver num ambiente que convida seu espírito empreendedor e sua inteligência não para tocar em concertos, pintar quadros, fazer neurocirurgias, mas para entrar na indústria do crime?
Por qualquer número que se examine -jovens nas periferia, taxa de escolaridade ou de emprego-, vê-se a brutal dimensão da marginalidade. Temos 7 milhões de jovens que nem estudam nem trabalham. Segundo as estatísticas, entre eles, teríamos 350 mil supertalentosos.
O pior é que, para muito deles, como alertou Giovani, o talento é mais uma fonte de ressentimento, porque são chamados de burros na escola ou pela família. Sua inteligência é, todavia, aceita nas quadrilhas que exigem destreza. É claro que essas histórias sempre acabam mal.
Em se tratando de violência, a discussão mais relevante não é a legalização das drogas, mas a abertura de mais espaços para os jovens a fim de que tenham perspectiva e, assim, possam apostar no futuro. Um país que joga fora quase 3 milhões de seres altamente talentosos só pode ter uma droga de elite.
PS – Coloquei em meu site (www.dimenstein.com.br) textos para ajudar os professores a perceber se os alunos têm alta habilidade. Como é comum superdotados serem hiperativos, muitos deles estão sendo medicados com antidepressivos. Detalho também a entrevista de Giovani Ferreira. Incomodou-me menos o fato de Giovani ser levado, quando criança, a um instituição psiquiátrica, apontado como deficiente mental, do que o fato de ser ironizado por ter optado, na USP, pela pedagogia. Esse é um sinal de que não respeitamos justamente quem deveria descobrir e encaminhar os talentos. Tivesse nascido nos Estados Unidos, seria paparicado por todos os lados.