Insegurança sem limite

Na semana passada, comuniquei à gerente do banco que meu cartão eletrônico estava falhando e requisitei reposição -a resposta a esse simples pedido mostrou até onde a cidade de São Paulo mergulhou na selvageria.

Ela logo começou a anotar e advertiu: “É perigoso andar com cartão defeituoso, tem de trocar rapidinho”.
O perigo não era, como se poderia supor, ficar sem dinheiro num caso de necessidade, mas o chamado sequestro relâmpago.

O sequestrador ficaria irado se, enfiado no caixa eletrônico com o refém, não visse o dinheiro sair, descontando a sua raiva na vítima. “É sempre bom ter anotada a senha para que, caso o nervosismo afete a memória, possamos retirar o dinheiro”, recomendou a zelosa gerente.
O zelo encaixa-se numa estatística: a cada cinco horas, ocorre, em São Paulo, um sequestro relâmpago.

Tão comum se tornou essa modalidade de violência que o Ministério da Justiça recomenda a instalação de caixas eletrônicos apenas em lugares seguros -aeroportos, por exemplo.
Andar de carro com as janelas abertas é ousadia -o antigo hábito de namorar na rua, protegido pelo veículo, aventura.

Quando um historiador estudar os costumes neste final de século, vai tentar entender como um equipamento tão sofisticado -uma máquina que entrega dinheiro acionada por um cartão de plástico, que, por sua vez, se conecta a um computador instalado em alguma parte do planeta- transformou-se numa armadilha da selvageria mais primitiva.

A síntese da crise social brasileira, fruto de omissões e incompetências crônicas, está no descontrole da violência -não existe melhor termômetro. Resignada, a população vai, aos poucos, se acomodando, aceita como anormal o que é anomalia.

Numa conversa com esta coluna, na quinta-feira passada, o secretário de Segurança paulista, Marco Vinicio Petrelluzzi, deixou escapar uma frase que serve como símbolo do descontrole.
“Chegamos ao limite da repressão”, disse.

Vamos traduzir: a polícia, segundo ele, não consegue produzir mais, prender mais do que está prendendo, tirar mais criminosos de circulação do que já está tirando. Nem há mais lugar, disse o secretário, onde prender os marginais. Seria necessário, em seus cálculos, construir um presídio novo por mês. Impossível, claro.

O “limite” da repressão é identificado pelo secretário no aumento da população carcerária -cerca de mil novos presos por mês.


Até a semana passada, eram 84 mil presos; 15% mais do que no ano anterior. Ou seja, mais 14 mil.
“Esse aumento já é estrondoso. Nunca se prendeu tanto em tão pouco tempo”, afirma Petrelluzzi.
Por mês, 10 mil pessoas são detidas -a maioria, porém, não é encarcerada, usa de recursos legais para continuar em liberdade.


Tanta gente empilhada na cadeia faz o secretário temer outro tipo de “bug do milênio”: uma onda de rebeliões no final do ano. A polícia está informada de que corre o temor entre os presos de que a chegada do milênio vá provocar o fim do mundo, o juízo final, criando um clima de salve-se-quem-puder.

O problema é que, apesar de tantas prisões, o máximo que o governo consegue dizer é: a criminalidade parou de crescer. Ou está crescendo mais devagar.


Tamanha sinceridade mostra que, na prática, a polícia está jogando a toalha, atribuindo a epidemia da violência à desagregação social -do desemprego ao baixo salário, passando pelas drogas, escola ruim até a desestruturação familiar. O que, em parte, está correto.


São fatores que, a curto e médio prazos, não tendem a melhorar. O Brasil precisaria crescer acima dos 5% ao ano para reduzir o estoque de desemprego. Mas não significa que afetaria aquela camada crítica dos adolescentes com baixa escolaridade, presa fácil do crime organizado e do tráfico de drogas.
É dessa camada crítica que saem as manchetes da violência.

Evidentemente a situação é reversível -e a polícia é apenas e tão-somente um aspecto da segurança.
Mas lidar com as múltiplas causas que produzem o medo de andar na rua é, de longe, a principal tarefa das elites políticas e sociais no próximo século.


A taxa de cidadania de uma comunidade se mede por inúmeros meios: crianças na escola, mortalidade infantil, as cadeias, rede pública de hospitais.


Um deles é saber se as pessoas podem andar nas ruas sem se sentirem perseguidas.
De pouco adianta a sofisticação informatizada de caixas eletrônicos, com seus funcionais cartões de plástico, se não podemos caminhar em paz no espaço público.

PS – Por falar em segurança, começa, em São Paulo, na próxima terça-feira, uma experiência: a delegacia virtual. É simples: em vez de ir a uma delegacia dar queixa, o indivíduo entra numa página da Internet.
Pelo projeto, depois de chegada a queixa, o policial liga para a vítima, confere os dados e aciona a investigação. Foi montado com a Telefônica esquema especial para evitar tentativas de fraude.
A experiência se inicia para furto de documentos, roubo de carros e desaparecimento de pessoas.
A idéia é ir, aos poucos, atendendo mais pessoas pela Internet. Isso porque muita gente não reclama apenas porque (e com razão) acha que vai ser mal atendido numa delegacia. Grande parte dos crimes não é registrada devido a essa desconfiança -além, é claro, de que a polícia não resolve.
Quem quiser conhecer a página, deve digitar o seguinte endereço:www.polmil.sp.gov.br/ssp/